23 de dezembro de 2023

Valentia de mulheres potiguares

 

                 

             

              

            

              

              
               Anchieta Fernandes (in memorian)

          Em livros e artigos publicados em jornais e revistas, já se tem destacado o pioneirismo de mulheres potiguares: na política (a primeira eleitora no Brasil: Celina Guimarães Viana), na administração (a primeira prefeita no Brasil: Alzira Soriano), na aviação (a primeira brasileira brevetada por uma escola de aviação: Lucy Garcia). Mas, merece ser relembrada sempre a própria valentia, a bravura de algumas potiguares que enfrentaram a arbitrariedade de poderes constituídos, ou de potências estrangeiras, em nome de patriotadas, de religião, de domínio econômico.
           É necessário se fazer uma soma de fatos, onde a memória de procedimentos femininos heróicos, colhidos de dentro de recortes históricos, sirva à identidade da mulher potiguar em um único volume de uma nova História do RN, segundo o viés dela, o pertencimento dela ao patrimônio das decisões históricas, mesmo contra a vontade masculina. Não para separar um sexo do outro (“guerra dos sexos” é mais uma expressão para telenovelas da Rede Globo), mas para complementar, com a versão dos fazeres femininos de luta, esta nova História do Rio Grande do Norte.
            Vejamos a história de algumas destas nossas conterrâneas, como corajosas representantes do seu sexo que não se submeteram a determinadas imposições masculinas. Comecemos por aquela que é considerada a primeira guerreira, a primeira mulher que, por vezes as tarefas familiares para empunhar armas em defesa da terra brasileira: a índia Clara Camarão.Esposa de Poti, batizado como Dom Felipe Camarão, combatente contra a invasão holandesa, Clara surpreendeu o marido e outros guerreiros (portugueses) pela coragem e pela habilidade no manejo das armas.
             Em seu livro “Natureza e História do Rio Grande do Norte”, João Alves de Melo conta: “Mergulhada nas hostes de Henrique Dias, à frente dos seus negros, e Camarão à frente dos seus índios, Clara Camarão comandava a sua esquadra de mulheres, por ela atraídas e por ela dominadas, lançando-se com elas na vanguarda das tropas que combatiam. E o seu nome ficou, como uma legenda, nessa batalha de Porto Calvo, em 1643”. Clara era da tribo dos Carijós e foi escolhida pelo Chefe dos Potiguares para sua esposa. Viveram no lugar conhecido como Aldeia Velha (hoje, bairro de Igapó).
            Outra mulher heroína, de inequívoca, foi Ana Floriano. Mãe do jornalista Jeremias da Rocha Nogueira, demonstrou em Mossoró sua coragem em pelo menos dois episódios. O primeiro foi a 1 de janeiro de 1875. Devido ao jornal O Mossoroense sempre ter demonstrado independência de opinião diante dos erros das autoridades locais, criticando-os, foi motivo de uma tentativa de empastelamento no referido dia 1 de janeiro de 1875. O jornalista Lauro da Escóssia, bisneto de Ana, contou em um número d’O Mossoroense (exemplar de 17 de outubro de 1972) como foi a coisa e quem a heróica mulher enfrentou:
           “Um grupo capitaneado pelo deputado Rafael Arcanjo da Fonseca, na mais ignóbil ostentação de desordem oassou todo o dia fazendo exibições nas ruas da cidade. Há em torno dessa pérfida atuação dos desordeiros, aquele episódio conhecido da história e registrado na agência consular portuguesa, onde o diretor e redatores do jornal (...) se homisiaram. Ana Floriano, a mãe de Jeremias, postada no descanso da escada que levava ao primeiro andar do prédio em que estavam os jornalistas, gritou para a turma de desordeiros alcoolizados posta ao pé da escada: “Quem subir a escada morre na ponta deste espeto!”
            Em setembro do mesmo ano, Ana liderou um grupo de umas 300 mulheres que, inconformadas com o sorteio obrigatório dos nomes de filhos e maridos para o serviço militar, foram até à casa do escrivão do Juiz de Paz, e tomaram papéis e livros concernentes ao sorteio para o exército e armada, rasgando-os. Amotinadas mesmo, as mulheres se dirigiram à Praça da Liberdade, para enfrentarem um corpo da Polícia, organizado para dominá-las. Aos gritos de “Avança!” as mulheres lideradas por Ana entraram em luta com os soldados, tendo como conseqüência feridos e feridas no calor do entrevero.
            O ano de 1934 possibilitou vir à tona a coragem das mulheres do Rio Grande do Norte sob dois prismas: o da luta eleitoral, e o das lutas sindicais no viés das guerrilhas. Governava o estado o Interventor Mário Câmara. Desenvolvia-se desde 1933 a campanha para as eleições à Constituinte Federal. Num clima de muita violência, ocorrendo desde surras aplicadas contra padres até o assassinato do engenheiro Otávio Lamartine. Filho do ex-governador Juvenal Lamartine. Os membros do Partido Popular diziam que estas violências eram perpretadas pela Aliança Liberal, o partido de Mário.
          As mulheres reagiram bravamente a estas violências. Um dos fatos conhecidos é o que aconteceu em Caraúbas. O jornal oposicionista A Razão publicava artigos narrando as violências, e acusando de autores o interventor através de bandos armados. O Dr. José Augusto, um dos líderes do Partido Popular, anunciara sua passagem por Caraúbas, como uma das etapas da campanha. Joaquim Saldanha, líder da Aliança em Caraúbas, andou dizendo que faria o Dr. José Augusto engolir um dos exemplares d’A Razão, para “dar uma lição”. A comitiva populista foi recebida na cidade aos gritos de “morram!” pronunciados por um grupinho.
          Na sala de uma das casas da cidade, de propriedade de José Leônidas Fernandes, foi realizada uma sessão para se homenagear a comitiva e se ouvir as propostas do Partido Popular. Quando os recém-chegados ouviam um discurso de saudação de Filemon Pimenta, entrou na sala, de rebenque em punho, e exibindo um exemplar d’A Razão, dizendo que “vinha cumprir a promessa”, Joaquim Saldanha. Enquanto o Dr. José Augusto dava as costas ao aliancista, a jovem Arlete Fernandes, num ímpeto de bravura, chegou perto de Joaquim Saldanha, e gritou bem alto: “Viva o Dr. José Augusto!”
         Também no interior, se desenvolvia na época a luta do sindicalismo. Mas um sindicalismo consciente, não atrelado ao peleguismo. Vinha desde os anos 20 no Rio Grande do Norte. A historiadora Brasília Carlos Ferreira, em seu livro “O Sindicato do Garrancho” (Departamento Estadual de Imprensa, 2000), dá notícia do Sindicato Geral dos Trabalhadores, existindo no estado durante a referida década de 20. Este sindicato publicava o jornal semanal “A Folha Operária”. No começo da década de 30, foi fundado em Mossoró o Sindicato dos Trabalhadores em Salinas (também chamado Sindicato do Garrancho).
          Este sindicato faria uma experiência pioneira de guerrilha, em 1934, onde, no combate contra os “coronéis” latifundiários da região morreu o grande proprietário de terras e de gado Arthur Felipe. Orientados pelo sindicato, todas as salinas da região oeste já haviam feito uma greve geral em 1932. O importante na guerrilha de 1934, é que empregadas domésticas, de uma Associação de Mulheres, foram importantes na aquisição de armas para a luta. Tomavam ou roubavam revólveres, botavam no seio e levavam para os guerrilheiros. De uma vez, pegaram 12 rifles da companhia Força e Luz de Mossoró, quando estavam limpando as armas.
       Passam-se os anos. Em 1964, vem o golpe militar da direita no Brasil. Prisões. Mortes. Torturas. Os mandões do dia tiram antidemocraticamente do seu cargo o Prefeito de Natal, Djalma Maranhão. Dentre os prisioneiros políticos feitos no estado, além do prefeito e do seu vice, Luiz Gonzaga dos Santos, estavam algumas mulheres: Maria Laly Carneiro (hoje, médica e condessa, na França), Margarida de Jesus Cortez, Maria Diva de Salete Lucena e Mailde Ferreira Pinto. Esta última (hoje, casada com o escritor Cláudio Galvão) era na época a Diretora da Diretoria de Documentação e Cultura, órgão da Prefeitura Municipal de Natal.
          Ela, embora atemorizada, é claro, pela brutalidade dos métodos empregados por policiais e outros militares contra presos políticos, demonstrou algumas vezes rara coragem. Uma das suas reações corajosas, onde se pode deduzir exemplo de resistência, foi quando um policial que a interrogava, perguntou (sugerindo capciosamente que ela iria comandar guerrilhas) se ela “gostava de empunhar metralhadora.” Ela sentiu-se insultada, sustentou seu olhar contra o do militar “e nada respondi” (conta ela em seu livro “1964. Aconteceu em Abril”, precioso documento sobre o que se sofreu naqueles anos de chumbo).
        A valentia da mulher potiguar foi demonstrada, inclusive, fora do estado. Como exemplo, pode-se mencionar o caso de Irmã Lindalva (Lindalva Justo de Oliveira). Nascida em Assu, fez Noviciado na comunidade da Casa de Caridade Imaculada Conceição, em Nazaré da Mata, Pernambuco. Foi enviada para servir no Abrigo Dom Pedro Segundo, em Salvador. Desrespeitando a sua condição religiosa, um dos abrigados tentou levá-la a infames práticas sexuais. A jovem freira rejeitou com firmeza, e foi assassinada em 1993. Em 2007, foi beatificada como Mártir.          
   

9 de dezembro de 2023

Leitura Cirneana dos Quadrinhos

 

     Moacy Cirne



Anchieta Fernandes (in memorian)

   Incontestavelmente, um dos mais lamentáveis acontecimentos para a cultura brasileira neste ano, foi o falecimento, em Natal, no sábado, 11 de janeiro de 2014, do escritor(poeta, crítico e teórico de literatura, cinema, quadrinhos e política) Moacy da Costa Cirne. Um norte-riograndense de talento multifário. Talento este que formou a sua base maior desde o 12 de março de 1967, quando chegou ao Rio de Janeiro, para ali morar definitivamente.
   A importância da transferência de sua moradia, de Natal para o Rio de Janeiro, é que somente no RJ, em contato com livrarias que vendem livros e outras publicações estrangeiras destinadas a estudar a teoria das EQs (coisa rara na Natal da época, que só vendia as publicações corriqueiras das revistas nacionais) ele despertou para o valor estético e sociológico dos quadrinhos, embora já fosse um leitor entusiasmado de revistas em quadrinhos.
   Já escrevi certa vez, e o repito agora com outro referencial temporal após sua morte (embora seja o óbvio para qualquer leitor bem informado): Moacy Cirne foi o mais respeitado crítico, historiado e teórico das histórias em quadrinhos no Brasil. E com a marca do pioneirismo: seu livro “BUM! A Explosão Criativa dos Quadrinhos” foi o primeiro a se publicar no nosso país sobre o tema. Editado pela Editora Vozes, de Petrópolis, foi lançado em 1970, ganhando durante alguns meses a categoria de best-seller, pois passara a ser o mais vendido de prosa de não-ficção nas livrarias brasileiras.
   Leitor e estudioso do assunto, MC apresentou os resultados de suas pesquisas no livro, um denso e atualizado ensaio que respondeu a em progressobreHQ . Como e quando nasceu a história em quadrinhos? Qual a razão do seu êxito? Quais as particularidades de sua linguagem? Quais as suas relações com os outros meios de comunicação do nosso tempo? Qual a sua influência sobre aliteratura de vanguarda no Brasil e no estrangeiro? Como é a história em quadrinhos brasileira? Como será a história em quadrinhos do futuro? – a todas estas perguntas o livro de MC respondeu.
Em 1971, novo livro de MC pela Vozes: “A Linguagem dos Quadrinhos – O Universo Estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa”. Desta vez, “além de levantar alguns problemas ideológicos e econômicos da maior relevância cultural, específicos à nossa realidade contextual, estuda (pela primeira vez entre nós)a experiência do Pererê, de Ziraldo, e a obra em progresso de Maurício de Sousa” (da orelha do livro). O leitor do livro ficou sabendo reconhecer os procedimentos onomatopaicos em Ziraldo, as melhores estórias da revista Pererê (que circulou de 1960 a 1964, editada pela Empresa Gráfica O Cruzeiro), a metalinguagem e o absurdo ontológicoo em Maurício de Sousa.
  MC não parou depesquisar e estudar os quadrinhos, e, concomitantemente com seus livros de poemas (em versos e visuais), de ensaios literários e sociológicos, de estudos e crítica sobre outra área cultural – que é o cinema (uma outra paixão de MC, já que foi cineclubista em Natal, fundador do Cine Clube Marista, e ex-presidente do Cine Clube Tirol)  - continuou contribuindo com novos livros ao levantamento das questões que dizem respeito aos quadrinhos.
   Em 1972, publicou (novamente pela Vozes, de Petrópolis) o livro “Para Ler os Quadrinhos – Da Narrativa Cinematográfica À Narrativa Quadrinizada”, onde “focaliza uma das mais profundas relações estruturais da arte contemporânea a partir da problemática da leitura, instaurando a narrativa como pólo centralizador de duas linguagens distintas; a relação cinema/quadrinhos” (do texto na contracapa). Sempre apoiado na semiologia e numa leitura criativa oriunda da vanguarda, MC deteve-se nos mais variados aspectos: a imagem, a tela e a página de revista, o primeiro plano, os cortes elípticos, a decupagem, os blocos significacionais (expressão, aliás, criada por MC, para definir a composição gráfica de momentos narrativos) etc.
Dez anos depois, a visão de MC sobre os quadrinhos atingira um razoável embasamento político. Em 1982, aEditora Achiamé, do Rio de Janeiro, publicou seu livro “Uma Introdução Política Aos Quadrinhos”. Nele, oescritor seridoense analisou, dentre outras vertentes temáticas, as seguintes: o papel dos quadrinhos em relação à luta dos trabalhadores; a questão de um quadrinho politicamente combativo; a ideologia dos super-heróis; o imperialismo cultural em Mickey e Tio Patinhas; o negro e a mulher nos comics; o mundo de Mafalda; o imaginário gráfico no quadrinho moderno; a relação cartum/quadrinho e o quadrinho alternativo brasileiro; Zeferino e Graúna: a escrita de Henfil.
A seriedade da pesquisa histórica e da colocação críticae teórica de MC levou o Ministério da Cultura, através da FUNARTE, a encampar a publicação do seu livro “História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros”, que foi lançado em 1990, em uma edição da Europa – Empresa Gráfica e Editorial, do Rio de Janeiro. É um livro de mais de 100 páginas, todo ilustrado, e abrangendo toda a produção brasileira no gênero, inclusive as criações de desenhistas e roteiristas do Rio Grande do Norte. Este livro recebeu o Prêmio cubano Las Palmas.
   O sexto livro de MC sobre o tema revestiu-se de uma característica interessante: desde o título (“Quadrinhos, Sedução e Paixão”, publicado pela Vozes em 2000), mostrou que o crítico sério, marxista, sociólogo das comunicações, era também um leitor apaixonado dos quadrinhos. Ou – como é explicado na orelha do livro –afinal, a febre sociológica, que norteava os primeiros ensaios sobre os quadrinhos, nos anos 60 e 70, já passara. O momento exigia uma reflexão mais profunda sobre as potencialidades criativas e seus devaneios oníricos, assim como continuava exigindo uma visão acurada de seus embates ideológicos e de sua relação com as novas tecnologias e algumas das demais linguagens do campo artístico.
   O último livro de MC sobre o tema quadrinhos, que foi “A Escrita dos Quadrinhos”, publicado em 2005 pela editora Sebo Vermelho, traz um estilo que emociona, substancializado inicialmente (primeiro capítulo: “Meus primeiros gibis”) pela memória. MC escreve/explica: “meus amigos, minhas amigas, companheiros e companheiras de viagem cultural, não estou aqui para fazer teoria, pois já o fiz (particularmente em Para ler os quadrinhos, 1972, e Quadrinhos, sedução e paixão, 2000). Estou aqui, istodespedida.”
   Esta última frase pode levar às lágrimas os amigos do escritor falecido. Mas seria apenas uma maneira de dizer, emocionadamente, que era o último livro sobre quadrinhos que ele escreveria? Porque, embora tenha um estilo mais juvenil (até humorístico em determinados trechos) e um leque de assuntos mais abrangente que apenas quadrinhos (incluindo ficção científica, cinema, pintura etc.), no livro o impulso de teorizar não deixou de estar presente (e isto não é uma coisa negativa; teorizar é necessário para se explicar posições críticas e análises de linguagens); como, por exemplo, a visão da poeticidade visual dos quadrinhos (v.p.81 do livro: “Em sendo uma escrita gráfica, as Histórias em Quadrinhos alimentam-se formal e estruturalmente de procedimentos técnicos visuais que estão em sua base semiótica de produção e realização. Por isso mesmo, mais do que outros discursos da arte sequencial (particularmente, cinema e telenovela), os quadrinhos podem se aproximar da poesia visual”.
   É importante saber que, em “A Escrita dos Quadrinhos”, MC não condenou o uso internáutico dos quadrinhos. Diz ele: “Os quadrinhos, que sempre se valeram do papel como suporte material, passam a ser uma nova linguagem, ainda em fase de transição criadora, a partir de elementos de sua própria linguagem, além de procedimentos técnicos comuns à computação gráfica, ao cinema de animação e à interatividade proporcionada pela internet e suas maravilhas no campo das conquistas provenientes da tecnologia.”

   No entanto, MC, como um sempre elogiável humanista aberto à visão planetária, alerta no livro que “praticamente toda a África e partes consideráveis das Américas e da Ásia ainda não vivem o processo de informatização de seus núcleos sociais”; e que “seus problemas de sobrevivência não são meras abstrações metafísicas. Esses núcleos, considerados socialmente, precisam antes lutar por conquistas básicas mais urgentes, sem as quais a dignidade humana pode se perder no mais vazio e cruel dos mundos. Afinal, para a grande maioria de seus habitantes, massacrados pela fome e pela miséria, trabalho,moradia, transporte, saúde, alimentação e educação fundamental são mais importantes do que qualquer hipertexto.”

Texto publicado na edição do Suplemento cultural "Nós, do RN" - fevereiro de 2014

30 de outubro de 2023

Câmara Cascudo

  


Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal no dia 30 de dezembro de 1898, foi historiadorantropólogoadvogado e jornalista. No jornalismo começou a trabalhar logo cedo, aos 19 anos de idade no jornal "A Imprensa", de propriedade de seu pai, e depois foi trabalhar no jornal  "A República", de 1939-1960. Neste período de atuação no jornalismo potiguar, já havia publicado quase 2.000 textos. As  crônicas para o jornal “A República”,  já mostrava a sua face de historiador do cotidiano, escrevendo  pequenos textos, chamados Actas Diurnas,  o dia a dia de Natal e de seu povo.  Narrando fatos com personagens ilustres,  pitorescos e anônimos. O que chamou atenção de muita gente e sendo uma das principais atrações do jornal na época.
Ele escolheu escrever no jornal “A República”, porque naquele período já era o melhor jornal do Estado do RN. Foi na “A República”, que ele criou três colunas interessantes, como:  BiblionBiblioteca e Acta Diurna. A coluna Biblion foi lançada em julho de 1928, foi suspensa nos anos 30 e reapareceu no último trimestre de 1933. Nela, Câmara Cascudo comentava livros que recebia de escritores locais e de outros Estados. A coluna Biblioteca, seria no mesmo conteúdo à coluna anterior, foi lançada em maio de 1939 e publicada diariamente até setembro deste mesmo ano.
Acta Diurna, essa considerada a mais importante, foi iniciada em maio de 1939   a 1946. De 1947 a 1952 ela passou a ser editada também pelo jornal Diário de Natal. De 1953 a 1958 a coluna foi suspensa e de 1959 a 1960, a coluna volta a ser publicada pelo jornal “A República”. Foram publicados, na totalidade, 1.848 artigos dos mais variados assuntos. Na coluna Actas Diurnas na “A República” publicou temas como “Sapato emborcado”,  em 31 de dezembro de 1944.  O luto foi branco?,  em 17 de abril de 1941, entre muitos outros. Esses textos levantavam questões  desconhecidas do leitor norte-rio-grandense e  que engrandeceram o conteúdo do jornalismo da época.
Na sua trajetória no jornalismo do RN foi repórter e pioneiro do “Jornalismo Cultural”, introduzindo temas como história, geografia, folclore, fato inédito até aquele momento. No decorrer dos anos, Câmara Cascudo tem sido homenageado de várias maneiras. A mais tradicional tem sido dar seu nome à instituições ligadas à cultura. Como por exemplo:  o Memorial Câmara Cascudo, a biblioteca e do museu que levam seu nome.  A conservação da casa da “Junqueira Aires”, onde Cascudo viveu a maior parte de sua vida, também faz parte de sua homenagem.

Ele passou toda a sua vida em Natal e foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador das manifestações culturais brasileiras deixou uma ampla obra, inclusive o Dicionário do Folclore Brasileiro (1952). Entre seus muitos títulos destacam-se: Alma patrícia (1921), Contos tradicionais do Brasil (1946). Estudioso do período das invasões holandesas, publicou Geografia do Brasil holandês (1956). Suas memórias, O tempo e eu (1971), foram editados postumamente. Ele faleceu em Natal, 30 de julho de 1986.

12 de setembro de 2023

Prestes em Natal

  

                                                                                                   Luís Carlos Prestes

Por Franklin Jorge 

Pontual e de uma irrepreensível cortesia, Luís Carlos Prestes recebe-nos a mim e ao escritor Jarbas Martins às 6h30 da manhã, no saguão do hotel Samburá, onde está hospedado, no Centro da cidade.
Recém-saído do banho, ainda exalando um agradável cheiro de sabonete, o cabelo bem cortado, faz-se acompanhar do médico Salomão Gurgel, um norte-rio-grandense que ele conheceu em Moscou. Prestes, homem discreto, parece de alguma forma cansado, talvez, por tanta exposição na mídia que o persegue como se fora um animal pré-histórico. Veste-se com elegância e distinção.
Madrugador desde menino, reporta-se à  exaustiva homenagem que lhe foi prestada na Assembléia Legislativa do Estado, ontem à noite, em sessão que se prolongou demasiadamente além do previsto.
No Brasil, nada funciona, afirma numa voz calma, segura e polida. Até as homenagens excedem os limites da normalidade. Dormi pouco, mas após um banho frio, sinto-me renovado e pronto para responder aos seus questionamentos. Pergunte o que quiser.
Prestes tem 89 anos. De estatura abaixo da média, nem gordo nem magro, conduz a conversa com desenvoltura. Então os senhores são jornalistas. Pois saibam que os jornais e as rádios continuam sistematicamente a censurar minhas palavras. Geralmente, omitem minhas idéias quando não distorcem minhas palavras. Mesmo assim, continuo falando, pois dependo da palavra para ajudar na transformação de uma sociedade estigmatizada pela miséria e instruída pela corrupção. A palavra é a arma de que disponho e estou sempre a usá-la da melhor forma contra os políticos individualistas que oneram o país.
A imprensa é uma organização capitalista e está toda nas mãos da classe dominante. Portanto, não podemos estranhar que colabore para que tudo continue como está. Apesar da abertura, a imprensa continua comprometida com a classe dominante e nada faz para reduzir o quadro de alienação que vigora de Norte a Sul.
Costumo dizer que no Brasil ninguém nasce comunista. Falta-nos politização. O brasileiro não é politizado. Aqui, a ideologia é metida na nossa cabeça quase a marteladas. Nosso maior erro, contudo, é não fazer nada. Há uma cultura de acomodamento que dirige e entrava o país. Submetemo-nos a tudo sem espernear e sem usufruir desse direito legítimo. Não fazemos nenhum gesto passível de desmascarar o poder arbitrário que a tudo corrompe. De todos os brasileiros, o presidente Sarney é o mais submisso. E também o mais duvidoso dos brasileiros.
Nos países civilizados, as forças armadas são instrumentos do Estado. Aqui, ocorre o contrário: o Estado é instrumento das forças armadas. É refém delas.
Desde moço fiz uma opção reiterada pelo ser humano e pela liberdade. Por isso, desde a mais remota juventude – sempre renovada no entusiasmo de uma luta sem fim e sem fronteira -, jamais me curvei a interesses que contrariassem meu idealismo. Sempre me coloquei acima dos limites partidários. Não tenho nem nunca tive uma vida fácil.
Sentado numa poltrona à entrada do restaurante do hotel, Prestes fala torrencialmente, como alguém que tem urgência em comunicar suas experiências. Se eu o conhecesse, diria que está bem humorado. Ele confessa que não esperava que a entrevista fugisse ao ramerrão de praxe. Sempre me perguntam as mesmas coisas, como decorrência desse grande cansaço que mortifica os jornalistas brasileiros. Tenho a impressão de que eles fazem sempre as mesmas perguntas, em todos os lugares, a qualquer pretexto. Natal, de qualquer forma, me surpreende. Porém não posso dizer que conheço Natal. Não vim fazer turismo. São muitas as solicitações e os compromissos que ainda tenho de satisfazer.
O sofrimento é uma grande escola. Como sabe, muito moço, conheci a prisão. Quando descobri a ideologia marxista, vi-me obrigado a exilar-me
Em Santa Fé, na República Argentina, viveu por muitos anos na clandestinidade. Toda a minha vida, desde a mais tenra idade, foi marcada pelo sofrimento. O idealismo custa caro. A você, que é ainda bastante jovem, diria que fique atento a essa realidade: o idealismo custa caro, muito caro. Mas, em geral, só despertamos para esse fato demasiadamente tarde. Porém sem idealismo nada se faz que seja grande. O sacrifício pessoal faz parte do idealismo.
Filho de Antonio Pereira Prestes (1870/1908), e de Leocádia Felizardo Prestes (1874/1943), ficou órfão aos dez anos. Meu pai era engenheiro militar. Foi aluno de Benjamin Constant e sempre simpatizou com o Positivismo comtiano. Vivíamos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, uma cidade abafada e insalubre, construída sobre uma grande lage de pedra.
Lá, em Alegrete, minha mãe contraiu tuberculose e mudou-se para Porto Alegre. Meu pai, porém, continuou em Alegrete. Ele tinha a patente de capitão do Exército. Quando morreu, seus próprios colegas de farda roubaram-lhe os pertences. Muito cedo, senti a necessidade de trabalhar.

Eu era o filho mais velho e sempre fui educado entre as mulheres. Morávamos numa casa modesta. Nossos recursos eram limitados. Diante disso, minha mãe passou a costurar para fora e matriculou-me num colégio militar. Fui a contragosto, mas não havia o que fazer. Eu me lembro que passei a chegar cedo ao colégio, para participar do almoço; depois das aulas, permanecia mais tempo na sala de aula, fazendo qualquer coisa, à espera do jantar. Agindo dessa forma eu diminuía as bocas que se alimentavam de um pequeno soldo, que foi tudo o que o meu pai nos deixou.
Minha mãe era uma mulher culta. Ela costumava dizer-me que a juventude era feita para o estudo. Era uma mulher que lia e educou-me na crítica aos militares. Aos dez anos, durante a famosa Campanha Civilista encabeçada por Ruy Barbosa, minha mãe levava-me com as minhas irmãs aos comícios. Aquilo me empolgou. O senhor deve saber que a mulher, quando é combativa, é mais conseqüente do que os homens. Assim era minha mãe. Uma mulher que não se deixou vencer. Dei o seu nome à minha filha.
Emocionado, evoca a grande marcha da “Coluna Prestes” que, sob o seu comando, cruzou o Brasil e passou pelo Rio Grande do Norte. Aqui cruzamos o alto sertão e nos aquartelamos em Luis Gomes, uma aldeia ainda e esquecida dos poderes constituídos. Nossa luta era fundamentalmente dirigida contra o presidente Arthur Bernardes. Era a luta contra a fraude que campeava por toda parte, arruinando o país e promovendo a descrença entre os cidadãos. Lutamos, como idealistas, contra o poder da justiça brasileira que já era muito corrupta naquela época e ignorava soberbamente o direito dos pobres. Lutamos por uma justiça limpa e um Estado livre da corrupção, representada, naquele momento, pelo governo de Arthur Bernardes.
Empolgado com as lembranças de sua luta, o velho cavaleiro da esperança, conforme o definiu o escritor Jorge Amado, Prestes refere-se longamente sobre a origem de tudo, o escândalo provocado pelas cartas, comprovadamente de autoria do presidente, como afirma com ênfase, dirigidas ao seu amigo Raul Soares. Divulgadas pelo jornal “Diário da Manhã”, indignou a opinião pública e o pôs em marcha, à frente de uma coluna, em sua heróica reação. Tantos anos depois, Prestes ainda sabe as cartas de memória e as repete com a indignação de sempre. “(...) Os militares podem ser comprados com outros galões e bordados”, escreveu o presidente Bernardes a Raul Soares.
Fragmento de “O Spleen de Natal” [V. 3-3, inédito]

6 de agosto de 2023

Meu amigo poeta

  Walter Medeiros


As gavetas da minha lembrança ficam meio emperradas em certas circunstâncias, como a que vivencio neste momento. Quero lembrar o instante em que conheci um amigo de longas datas. Mas sinto que é mesmo impossível. O que resta é saber que o conheci em uma noite triste, mesmo que o tenha conhecido de dia.

Era o tempo em que o simples fato de conversar com alguém podia gerar sérios problemas. Para trocar ideias e tratar das lutas pela liberdade no Brasil, frequentemente era necessário marcar encontros, conversas e reuniões em bares. Assim ocorria nos anos setenta do século passado. Havia quem dissesse que quando escrevessem a história da revolução brasileira os bares teriam um capítulo especial.

Conheci, então, o amigo nesse ambiente. Nos bares da época: Pitombeira, Postinho, Asfarn, Castanhola, Jangadeiro. Além dos bares, sempre nos encontrávamos no Cine Clube Tirol, no Cinema de Arte do Rio Grande – manhãs de domingo, nas casas de amigos. Também nos ambientes legislativos, comícios, feiras, debates.

Posso definir esse amigo como um revolucionário, poeta, boêmio, notívago, intelectual, operário do dia a dia. Uma pessoa de bom gosto.

Daquelas gavetas sem datas precisas surgem as lembranças de sua habilidade com o violão, cantando músicas de Geraldo Vandré e falando sobre seu prazer de ouvir Capinam. Tudo junto com os amigos que corajosamente faziam tudo que podiam para mudar o mundo. Era tudo difícil, indefinido, duvidoso, aflitivo, mas era viver ou viver aquele momento, assim definido por outro amigo, filho de um homem da Escola Superior de Guerra – ESG: “Se peguei o bonde errado, agora vou até o fim da linha.”

Nos passos desse amigo vi seus versos delirantes e fascinantes, que expôs para o mundo em seus livros e recitais informais. Vejo sua mansidão e humanismo sem igual. Sua presença já é suficiente para completar a nossa vida, a nossa cidade, o nosso mundo.

No dia de hoje vi certas alusões ao dia do amigo. Sendo ou não – não conferi – aqui presto uma homenagem a esta figura que consegue até desfazer uma máxima segundo a qual “toda unanimidade é burra”. Ele é uma unanimidade e não torna burrice assim defini-lo.

A significância desse nosso amigo é tanta que o que sei, vi, vivi e compartilho com ele é uma palhinha diante do que certamente têm dele a dizer os outros. Os inúmeros amigos de Manoel Fernandes, Volonté.