Franklin Serrão
— Chegou o circo, chegou ele — gritava o Moleque Saci pelas ruas
do Bairro.
— Tá chegando... tem um leão e tem palhaço — concluía
afoito, o alegre moleque.
Na verdade, era um circo bastante modesto e empobrecido. No
entanto, o Circo Santa Lúcia — seu nome — podia ser pobre de recursos, matéria,
mas, de alegria, era rico. Nele, durante o espetáculo, pouco importava, a lona
rasgada da cobertura, ou os poleiros frouxos de madeira, isso, e as outras coisas
menores, como o leão faminto e magricela, eram personagens coadjuvantes num
espetáculo maior onde o riso e a alegria eram os mestres de uma ópera valente.
O forte do espetáculo, do assano maior, era então as dançarinas, Rosinha — a
mais bela — sua mãe, Jurema, Claudete e Verônica Gardênia.
As meninas dublavam
e dançavam músicas vestidas apenas com um pequeno maiô colorido, bem
pequenininho, e ele de tão assim, fazia as carnes saírem por tudo que é lugar.
Rosinha, a mais bela, fazia sua performance, solo, e sua mãe fechava o show
cantando belas modinhas, músicas caipiras e outras coisas — algumas até de sua
autoria. Aquilo era muito bonito de se ver. Rosa’uarda — nossa bela da rua —
diante daquilo tudo, sonhava em ser dançarina também; para isso, imaginava viajando
com o circo, mas, naquela altura da vida, como já tinha tantos compromissos,
família e coisa e tal, viu que não dava, que era leseira da sua cabeça.
Rosa’uarda — outra menina com nome de rosa — já tinha filho e quando soube que
as meninas dançavam de noite e dormiam de dia — faziam zunzum, gracejo pago, há
dois — aí desistiu de vez da ideia.
Outra coisa curiosa do circo era a magreza do leão. O tal, era
tão magro que quando conseguia levantar-se, parecia transparente, translúcido,
dava para ver e estudar seu corpo, contar suas costelas, ver seu coração
batendo. Também, só comia gatos “os de rua” os que eram caçados, e de rumo,
tinham destino cruel, eram trocados pelos bilhetes do circo. Os garotos faziam
isso e sem remorsos conseguiam suas idas para o circo — bem que sobre isso, o
povo da minha rua fazia vista grossa. Foi então, que num dia pegaram, na falta
dos bichanos, um cãozinho pequinês. O leão deu fogo nele, torou o bicho no
meio; com uma só dentada, o cachorro se foi, já era. Isso meio que arretou e
embrabou tudo. Depois houve uma reprovação geral e desde então, o leão passou a
comer mesmo bom, só em dia de sorte.
O circo ficou no povoado até o dia da tragédia de Toni Alves – —
o acrobata, palhaço, malabarista e gerente. Toni costumava fechar o espetáculo,
realizando de verdade, um perigoso tiriri de unha, onde, para isso, encaixava
seus sapatos adaptados a uma barra de ferro. Nisso, do alto do picadeiro, dava
dez giro mortais. A cada giro completo — feito o perigoso catôcho — batia
palmas e recebia do público, os aplausos e gritos de viiiiiiixe! Era o
momento maior da noite. Porém, certo dia então, ele mal encaixou seus sapatos
na barra e foi, no primeiro giro, esmorecer à torto — esborrachou-se no chão.
Toni Alves, para ter coragem, costumava passar antes na bodega
de seu Valdomiro, pai dos smurfs, onde tomava algumas
carraspanas e aguardentes antes de voltar. Nesse dia então, talvez tenha
exagerado na dose, e aí, seu bem-querer de oficio, fez mal feito e por fim,
deteve-se no chão, foi seu acerto final.
Não morreu, graças a Deus! Todavia, ficou paralítico da cintura
para baixo. Foi o fim de sua carreira de artista.
Outros circos vieram... mas nenhum foi igual ao Santa Lúcia de
Rosinha, Toni e companhia. O pobre do Toni ficou aleijado; logo ele, que a
meninada gostava e costumava chamar de Toni Fezes.
Mas não foram só circos que chegavam e se iam. Os dias, um por
vezes, rapidamente se foram também; como em filas, foi um atrás do outro,
sumir, viajar para o interior, nos rumos do sul do mundo.
Na verdade, muitos outros depois do circo Santa Lúcia, chegaram.
Com suas lonas igualmente rasgadas, com seus humores famélicos, seus leões
magricelas, onde poder-se-ia ver também alegria e magia, porém, nenhum era como
o Santa Lúcia. Alguns, nem teto de lona tinham; teve um, que de tão pobre, mais
parecia um esponjeiro de moscas. Sua leoa sem rabo, cagava a jaula toda, uma
diarreia atrás da outra e ninguém sequer aparecia para limpar o desatino —
aquilo se enchia de tantas moscas que elas acabavam morrendo engasgadas na
sujeira. É tão verdade também, que das feras, essa leoa cotó, era a mais
gordinha e brava que já se viram.
Eu mesmo, nem gostava de olhar muito para
ela. O seu tratador sempre lembrava para os mais afoitos, os que gostavam de
aperriar o bicho. Nisso, costumava repetir, como avisos para a turba afoita,
que Dalila — o nome da fera — já até tinha comido o braço de um gaiato; lá pras
bandas de Igapó, o cabra mexeu com ela, e ela enfiou a pata para fora da jaula
e trouxe de volta, se varando, como prêmio, o braço do homem.
Pois é, nunca
houve circo igual ao Santa Lúcia. Isso foi devido, sei lá, por causa do Santa
Lúcia ser o primeiro. Talvez isso fosse o fato mais lógico e racional, os
etecéteras que fez do Santa Lúcia, o primeiro, de rumo, em nossos corações.
Sobre os palhaços, é bom lembrar de Tutuco — o que menos nomes feios e
palavrões chamava. E tem mais, Tutuco não arriava nem pro severo, nem pro
coisa. Nisso era mestre, em inteligência, e valentia... nunca passava em baixo
e sempre deixava seus parceiros de palco, sobretudo, os que queriam lhe passar
para trás, em maus lençóis. Tinha resposta para tudo, era quinem, como dizia o
dito, rapariga rim.
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