26 de setembro de 2016

A Modinha no Rio Grande do Norte

Gumercindo SARAIVA
Para divulgarmos a história da Modinha, seus verdadeiros e autênticos seresteiros em nosso Estado, temos que nos transportar, ao ano de 1973, no Rio de Janeiro, que se fixou como capital do Brasil e as artes tomaram impulso, com a influência da casa de Bragança.
Na metrópole do país, os pioneiros da Modinha foram: Inácio José de Alvarenga Peixoto (Alceu) — Domingos Galdas Barbosa (Lorena) — To­más António Gonzaga (Dirceu) — Cláudio Manoel da Costa (Clauceste) — além de outros continuadores que se multiplicaram, passando de Estado para Estado, até chegarem ao Rio Grande do Norte, já em épocas distantes, mas o resultado positivo aí está registrado na literatura da terra de Alberto Mara­nhão e tantos outros vultos que engrandeceram sobremodo.
A Modinha, ao contrário do que muita gente pensa, é uma forma ver­dadeiramente artística, podendo assemelhar-se ao ROMAN francês, LIED ale­mão, FADO português, (de origem brasileiro) e à própria canção italiana, que foram interpretadas pelos maiores cantores como Caruso, Schipa, Ramirez, Kiepúra, etc, etc.
Aparecendo primeiramente nos salões imperiais, essa canção foi culti­vada pelos vultos mais proeminentes de seu tempo, como Padre José Maurício, Bonifácio de Abreu, Cónego Januário. Cunha Barbosa, Saldanha Marinho, Mar­cos Portugal, este último, grande compositor europeu que, chegando ao Brasil en­controu um clima altamente artístico que o deixou entusiasmado.
ventário, lides possessórias e livros de registros, a genealogia e as datas igno­radas dos que fizeram nossa História; que busca, nos arquivos de Lisboa e nos sebos do Rio de Janeiro, o material necessário para contar o dia a dia do Rio Grande do Norte colónia e província.
Não me cabe louvar, neste momento, a homenagem prestada à memória do meu pai, nem enaltecer a figura do magistrado e homem de letras, hoje centenário. Mas, permitam-me um instante de saudade, para recordar o pai amantíssimo e virtuoso, homem humilde que nunca se envaideceu das glórias terrenas e cuja santidade senti de perto, poucos meses antes do falecimento, quando conversávamos sobre deveres conjugais e dizia-me que nunca precisara ajoelhar-se aos pés de um padre para confessar pecado contra a castidade. "Era uma expressão autêntica do homem de Deus", disse Nilo Pereira.
Minha missão, porém, é outra. Sou intérprete do profundo agradeci­mento da família à Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, da qual meu pai foi Presidente e um dos fundadores, e do Instituto Histórico e Geográfico, onde serviu durante mais de cinquenta anos, honrado no cargo de 1.° Vice-Presidente até a morte.
Agradecer também ao Acadêmico Hélio Galvão, advogado de renome, sociólogo do mutirão, etnólogo das cartas da praia, Comendador da Santa Sé pela divu!gação de seus largos conhecimentos da filosofia e da doutrina social da Igreja, sempre equidistante do conservadorismo que retarda e do moder­nismo que deforma, e, sobretudo, para mim, o amigo fraternal há 46 anos, que me concedeu o privilégio de abençoar amiúde o primeiro e um dos últimos dos seus rebentos.
Finalmente, a família agradece a todos que prestigiaram esta noite de homenagem. Confortada pela religião que o chefe e santo ensinou, sente sua presença constante e recorda a conduta que Nilo Pereira tão bem definiu ao dizer: "O Juiz era nele a encarnação mesma da verdade e da retidão. E ao lado disso a simplicidade que ele irradiava, o gesto sempre acolhedor e aberto, o sorriso benevolente, a cordialidade da palavra — tudo refletia nele uma grande alma que Deus chamou para ouvir do próprio poeta a "Lira de Poti", acom­panhada pelo coro dos anjos".

D. Pedro I compôs Modinhas e participou de serenatas à porta das moças bonitas e de suas namoradas. . . Também o afamado desembargador, Luis Fortunato de Brito, foi um expoente máximo da Modinha e cantou bas­tante nos salões aristocráticos da cidade e saudou aos luares nos bairros mais distantes de sua terra. D. Pedro II, muito ligado a música erudita, dando geralmente preferência aos compositores alemães ouvia religiosamente os seres-teiros como se estivesse escutando as obras de Bach ou Handel.Contam, que, na passagem do século (1899-1900), o natalense comemo­rou esse acontecimento com serenatas e foram nessa ocasião cantadas Modinhas de toda a espécie. As vozes seresteiras, acompanhadas por violões, saudaram com seus timbres diversos, a entrada do novo século.. E o novo ano também! Fato idêntico se repetia nesta capital no dia 31 de dezembro de cada ano, quando era prefeito da capital o jornalista Djalma Maranhão, convidando Santos Lima, Evaristo de Souza, António Lucas, o autor deste reencontro, clari-netistas, bandolinistas da radiofonia potiguar tendo a frente o "caudilho" com sua voz desafinada mas de timbre abaritonado iniciando a Serenata com a "Canção do Pescador", seguindo-se, as Modinhas de Ivo Filho, Auta de Souza, Segundo Wanderley, Olímpio Batista Filho, Carolina Wanderley, Ferreira Itajubá, Gotardo Neto, Lourival Açucena e outros autores do passado.
As Serenatas coordenadas por nós, a pedido de Djalma Maranhão, co­meçavam na residência do sr. José Maux Júnior, situada à Praça André de Albuquerque n.° 22 e, da mesma partíamos em grupo até aos primeiros raios do sol do dia primeiro de janeiro. Mas, vieram outros prefeitos e essas serestas oficializadas pela edilidade natalense desapareceram. Djalma Maranhão com sua sensibilidade artística preservando os costumes e tradições de nossa gente visitava as residências amigas com uma popularidade jamais alcançada pelos seus seguidores. E o ciclo natalino se completava com Fandangos, Lapinhas, Bumba-Meu-Boi.. . e Serenatas, advindas de tempo remoto, em que surgiam poetas e músicos compondo canções destinadas as tertúlias, desaparecendo como era natural do nosso convívio.Acreditamos, que, em Natal, muito antes da passagem do ano de 1800, (ainda Vila) já se cantavam Lundum, Chiba e outro tipo de música, mesmo por­que, a Modinha, desde fins do século XVI, era conhecida no Rio de Janeiro e Bahia. Desligando-se da SERRANILHA portuguesa, romance melodioso de caráter triste, mavioso, originária das camponesas de "Tras-os-Montes", ela, seintegrou em forma erudita, por isso, homens cultos tanto em Portugal como no Brasil, fizeram versos musicados, cujas estrofes são encontradas como jóias na literatura dos dois países, marcando uma época que nos separa com verda­deira recordação do passado.
Daí, ter o escritor, Mário de Andrade, afirmado que "a proveniência erudita europeia das Modinhas, é incontestável. Por outro lado os escribas an­tigos, se referindo às formas populares, citam o Lundum, o Samba, o Cateretê, a Chiba, etc, etc, por Brasil e Portugal, mas a Modinha de que falam é sempre a   de salão, de forma e fundo eruditos, vivendo na Corte e na Burguesia. . ."
Inicialmente acompanhada ao piano, a Modinha se estendeu grande­mente nas salas de música, onde suas estrofes possuíam o mesmo prestígio dos Quartetos de Câmera. Os cantores eram pessoas da alta sociedade, que não obstante interpretar as canções de autores anónimos, sentiam sempre o encanto de suas estrofes apaixonadas, aliadas a uma bonita melodia, produto de ins­piração de músicos de real envergadura de seu tempo. Dos salões, a Modinha passou a ser o encanto das serenatas, onde os luares eram saudados pelos acordes de violões plangentes que completariam noitadas alegres e festivas nas portas das moças onde os namorados enviavam uma mensagem de amor através das cmções especializadas.
Câmara Cascudo, estudando a Modinha norte-rio-grandense, num artigo em SOM, (Revista dirigida por C. Cascudo-Waldemar de Almeida-Gumercindo Saraiva) disse: "Não há um só poeta norte-rio-grandense que não haja dado ao violão algumas quadras. Muitos escreveram quase totalmente para ele, como I.ourival Açucena, Areias Bajão e Francisco Otílio. Outros só pelas Modinhas poderá ser conhecido. É o caso de Celestino Wanderley cujo livrinho AURORA (Natal 1890) é inadiável. A memória modinheira recordará sempre sua pro­dução "Hontem, hoje, amanhã" e o "Aí não queiras saber formosa Diva".
OS COMPOSITORES DESTE SÉCULO
A Modinha em nossa terra tem sido pouco divulgada e por isso em 1960 lançamos TROVADORES POTIGUARES, numa edição de Saraiva S. A. de São Paulo que também editou ANTOLOGIA DA CANÇÃO BRASILEIRA. Esses livros estão bem longe de se constituírem um relato completo, pois nossa pretensão, apenas, serviu para auxiliar em parte a história da canção mais popularizada em nosso Estado. Demos, é certo, um passo alongado, pesqui­sando Modinhas já no esquecimento do povo.
Nossa coleção, contendo mais de três mil poemas de autores norte-rio--grandenses, selecionadas e identificadas em sua primazia, será entregue na pri­meira oportunidade a uma instituição especializada, logo o nosso Estado pos­sua uma, para que seja salvo um património, antes vivendo ao relento e que julgamos valiosa para a nossa formação artístico-cultural. A própria vida de uma nação está muitas vezes cantada em versos.
É notório o número de pessoas que puseram música em versos anóni­mos e de poetas potiguares e a riqueza de melodia se perde porque o seres-teiro somente canta aquilo que gosta e no poema, encontre amores frustra­dos, romances entre dois jovens, lendas, paixão com afeto violento, afeição, grande mágoa e outros sentimentos excessivos. Outro estilo vivido na Mo­dinha é o misticismo na crença religiosa, como aconteceu na obra de Auta de Souza — uma das poetisas mais musicadas — em nosso Estado. Também, os poetas influenciados pela poesia condoreira, a exemplo de Segundo Wan-derley e outros vates completando admiravelmente o estilo da última fase romântica que tiveram Castro Alves, Tobias Barreto e Pedro Luís como mestres.
Por isso Abdon Trigueiro. Joaquim Galhardo, Cirilo Lopes, Cirineu de Vasconcelos, Israel, Chico, Jayme, João e Abelardo Botelho, Gabriel e João Saraiva, Temistocles Costa, Olímpio Batista Filho, Uriel e Junquilho Lourival, Eduardo Medeiros e Heronides França, este último, o que mais musicou os versos de Auta de Souza, com melodias repletas de ternura, onde os tons me­nores indicam mágoas e tristezas, envolvidas em grande parte na vivência de alguns sereneiros do passado, deixaram uma obra valiosa na história da Mo­dinha potiguar.
OS TEXTOS MUSICAIS ESTÃO SE PERDENDO
É lamentável que os textos musicais de nossas Modinhas não estejam no pentagrama, pois conseguimos, apenas, escrever e gravar umas duzentas composições, dando uma contribuição muito importante para que no futuro tenhamos, pelo menos as mais popularizadas. E a outra parte, com o de­correr do tempo há de sumir-se uma vez que autênticos conhecedores das melodias estão desaparecendo e alguns, não mais lembrando-se do verdadeiro texto musical.
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte ou a Fundação José Augusto bem poderiam organizar em "cassete", ou em outra forma de grava­ção. Modinhas potiguares, preservando desta maneira uma preciosidade ligada à musicalidade de nossa terra.


CANÇÃO DO PESCADOR
Constituindo a Modinha mais cantada do cancioneiro potiguar, publica­remos essa jóia de canção, composta em 1922, versos do poeta Othoniel Me­neses (1895-1969) membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, eleito para ocupar a Cadeira n.° 23 substituindo Bezerra Júnior, deixando de assu­mir o honroso encargo imposto por um grupo de amigos e admiradores logo após a vaga deixada pelo seu antecessor.
A "Canção do Pescado;", no decorrer do tempo, tornou-se merecida­mente uma música do povo que deu-lhe o nome de PRAIEIRA, não podendo se distinguir qual mais primorosa — a melodia do clarinetista Eduardo Me­deiros ou o poema de Othoniel Meneses, considerado o príncipe dos poetas noi te-rio-grandense.
Eis as estrofes da CANÇÃO DO PESCADOR

Versos de Othoniel Meneses Música de Eduardo Medeiros

I
Praieira dos meus amores
encanto do meu olhar !
quero contar-te os rigores
sofridos a pensar
em ti, sobre o alto mar !
Ai 1 não sabes que saudade
padece o nauta, ao partir,
sentindo, na imensidade,
o seu batel fugir
— incerto do porvir !

II
Os perigos da tormenta não se comparam, querida, as dores que experimenta a alma, na dor perdida, nas ânsias da partida! Adeus a luz, que desmaia nos coqueirais, ao sol pôr e, bem pertinho da praia, o albergue, o ninho, o amor do humilde pescador 1




Ill
Quem vê, ao longe, passando uma vela, panda, ao vento, não sabe quanto lamento vai nela soluçando
— a Pátria procurando !
Praieira, meu pensamento,
linda flor, vem me escutar
a história do sofrimento
de um nauta a recordar amores sobre o mar !
IV
Praieira, linda entre as flores
deste jardim potiguar !
não há mais fundos horrores,
iguais a esses do mar
— passados a lembrar !
A mais cruel noite escura,
nortadas e cerração,
não trazem tanta amargura
como a recordação
que aperta o coração !
V
Se às vezes, seguindo a frota
pairava uma gaivota,
logo eu pensava, bem triste:
  "o amor que lá deixei, quem sabe se ainda existe?" — Ela, então, gritava triste:
  "não chores! não sei" ! —
E eu sempre e sempre mais triste,
rezava a murmurar:
'— "Meu Deus ! quero voltar" !


Praieira do meu pecado,
morena flor, não te escondas!
quero, ao sussurro das ondas
do Potengi amado
— dormir sempre a teu lado. ..
Depois de haver dominado
o mar profundo e bravio,
à margem verde do rio
serei teu pescador,

oh ! pérola do amor !

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