10 de maio de 2017

Deífilo Gurgel: o garimpeiro das sombras

                                                                                                                 

 

                                                                                                    Deífilo Gurgel - foto divulgação

Conheci o mestre Deífilo Gurgel na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, fui seu aluno na disciplina de Folclore Brasileiro. Depois nos reencontramos na Fundação José Augusto, à época ele exercendo o cargo de Diretor de Promoções Culturais. Não foi difícil para o jovem estudante do curso de História acompanhar a dinâmica cultural do grande mestre do folclore potiguar, pois como seu aluno, demonstrei sensibilidade pelas coisas que o povo faz, pensa, sente, realiza, nos mais diferenciados contextos sociais. Antes, já havia conhecido o mestre Luís da Câmara Cascudo, sem entender sua grandeza e importância, nem muito menos sua vasta obra, um legado insuperável que o Rio Grande do Norte precisa conhecer no mínimo as mais importantes, que vai de Vaqueiros e Cantadores a História da Alimentação no Brasil. Depois, conheci Veríssimo de Melo com seu Folclore Infantil, livros e separatas que chega a mais de setenta títulos, sendo inúmeros outros ensaios e artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras.
Preciso deixar explicitado que não vou falar de Deífilo, o poeta, um dos mais importantes do Rio Grande do Norte. Ouvi em várias oportunidades o saudoso amigo Gilberto Avelino, outro consagrado poeta de quem tive a felicidade de gozar do clube de seus restritos amigos a seguinte expressão: “Prof. Severino, Deífilo Gurgel é um dos maiores sonetistas do Brasil”. Como ouvi também do próprio Deífilo, em nossas longas conversas no alpendre do casarão do Tirol, cuja temática não poderia ser outra senão o folclore potiguar: “Severino amigo, comecei minha vida intelectual escrevendo poemas e sonetos, mas, hoje, me considero muito mais folclorista do que poeta,  o folclore é minha vida, minha paixão, meu encanto. Por isto lhe peço nunca se afaste do folclore, tenho lido seus artigos no Jornal de Hoje, com algumas exceções, estão muito teóricos, baixe a bola, sente os pés no Rio Grande do Norte, que eu já estou muito mais pra lá do que pra cá”. Era o corretivo do velho e grande amigo que dedicou boa parte de sua vida pesquisando, divulgando, escrevendo, defendendo a rica e bela Cultura Popular do Rio Grande do Norte, encanto de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade.
Lembro-me, oxalá se me lembro, de nossas viagens, foram muitas. Prancheta, máquina fotográfica, o motorista Paulo Andreola e o fotógrafo Ubaldo, eram viagens de alegria, encantos e descontração. Nos anos 80, não existia telefone celular, qualquer comunicação tinha que ser nos postos da velha Telern, ao chegar à primeira cidade, antes de qualquer contato ia direto para o posto da Telern telefonar para D. Zoraide o grande amor de sua vida: “Zozó, cheguei” e citava no nome da cidade que estava. Ao terminar se dirigia pra e mim e dizia: “não vai telefonar pra sua mulher não?” – E eu: não. “Você é um irresponsável, viaja e não tem a delicadeza de dizer a mulher onde está, que horas chega. Coitada dela, também, já deve está acostumada com o tipo que tem”. São muitos os fatos pitorescos de nossas viagens em pesquisas pelas estradas, caminhos e veredas potiguares, impossível citar todas neste reduzido espaço. Vou contar mais duas: a idade avançando e com problemas de saúde e seguindo recomendações médicas, passei a viajar sem ele, sentia sua falta, no entanto, quando sabia de alguma viajem minha sem convida-lo, o telefone tocava, Zeneide atendia e dizia: é Deífilo. – Pelo amor de Deus, agora vou escutar tudo, tentava convence-lo da responsabilidade de que pesava sobre meus ombros, pois poderiam entender que era insistência minha. Não o convenci e fui conversar com D. Zoraide, ela me explicou que ele tomava muitos remédios, tinha horário de alimentação e tudo mais. E agora D. Zoraide que fazer? Estou com viagem marcada para o litoral sul, ela respondeu: está certo ele vai, mas você vai ter todo cuidado com ele, na subida do carro, na descida, onde tiver batente e tudo mais, um rosário de recomendações a mim e ao motorista. Vejam o que aconteceu. Ao chegarmos à Canguaretama fomos direto para o mercado público conversar com mestre Zé Dinar, do fandango. Caia uma chuvinha fina, cuidados redobrados, o motorista disse pode deixar tomo conta dele, quando segurava no braço ele, não aceitava e dizia: “João, amigo, estou muito bem, não vá pela conversa de Zoraide e Severino não, olhe aqui” – e começava a fazer exercício com as pernas e os braços. Nesses cuidados todos com ele, eu que ia caindo na calçada do mercado, o motorista me segurou, ele também pegou no meu braço e disse, quando chegar em casa vou dizer: “taí Zoraide o homem que você recomendou pra cuidar de mim, se  não fosse eu e João tinha se lascado de uma queda na calçada do mercado de Canguaretama”. Ao chegar em casa já foi logo contando, apontando para mim e rindo como uma criança: “taí Zoraide o homem que ia cuidar de D.G.” – e repetiu o acontecido. 
No I Seminário de Literatura do Povo, na UFRN, organizado por seu irmão Tarcísio Gurgel, começou a falar de suas pesquisas, apresentando uma das suas maiores descobertas, a romanceira Militana Salustino do Nascimento, da cidade de São Gonçalo do Amarante saiu-se com esta: “o povo diz que todo folclorista tem que fumar e beber cachaça, eu nunca tomei um gole de cachaça e estou ai andando pelo mundo fazendo minhas pesquisas”. Lá da plateia eu gritei. – E tempo, com oito filhos para cuidar. Ele olhou, olhou. - E eu morrendo rir. Ele então disse: “só podia ser você cabra sem vergonha” – e rindo também continuo a palestra.

Severino Vicente

Presidente da Comissão Nacional de Folclore

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