15 de setembro de 2017

Ao meu olhar, o serpentário



Carlos Henrique G. Leiros

   Nos idos de 1970, o bairro do Alecrim rivalizava em importância com a Cidade Alta, e ainda não havia se transformado no subúrbio triste e impessoal de hoje, abraçado por uma feira com manias de grandeza e despido dos velhos casarios. Respirava-se ali uma atmosfera de burgo; tinha-se ali noção das redondezas. Bastava que se subisse a uma cumeeira e a visão dos prédios de baixo porte se alongava, emoldurada por árvores velhas e quintais saudosos. Isso não existe mais. O Alecrim era sinônimo de classe-média, terra de amanuenses e funcionários públicos. Ninguém cabia em si de tanto orgulho dos loucos, como Lambretinha e Corisco, o primeiro chutando as latas de lixo, e o segundo jurando morte àqueles que o acusavam de haver roubado as imagens da Igreja de São Pedro ou mordido o nariz de Frei Damião.
   Eram os tempos do Cine São Luiz, do prédio da Souza Cruz na esquina da Presidente Bandeira, recepcionando quem desembocava dos lados da Sílvio Pélico, da Base Naval, da Alfaiataria de Ebenezer e da casa de Tatu, figura das mais folclóricas do bairro. Ali, no comecinho da Presidente Bandeira, eu morei por anos. Na Presidente Bandeira, principal do Alecrim, vivi tempos de garbo e traquinagens, chegando a conhecer bem o seu primeiro terço, que se estendia até as imediações das funerárias e do velho prédio do Detran, já uma famosa sinecura.
   Depois do relógio, para os lados das Quintas profundas, eu nunca me aventurei. Tampouco conhecia o lado oposto, além da feira, nos confins do “Chapéu Cagado”, onde, dizia a minha mãe, morava um louco encarcerado. Além do Café Vencedor, terras de Brasa de Goma e seu feérico desempenho de alcova, muito menos. Fui menino apenas da Presidente Bandeira e cercanias. É dessa época a minha experiência com o saudoso serpentário. Não me lembro por quais mãos o sinistro ônibus se apresentou perante o bairro. Lembro somente que minha mãe ou meu pai comentou a respeito. Um belo dia ele estava lá, e eu o vi, estacionado na calçada d'A Girafa, com o povaréu ao redor.
   O serpentário era motivo de assunto em qualquer lugar, e todos comentavam s o b r e o ô n i b u s comprido e niquelado, c o m a s j a n e l a s gradeadas, e repleto de gaiolas, onde, dizia-se, a g l o m e r a v a m -s e bichos peçonhentos de toda a sorte e à vista de todos, bastando apenas que o incauto pagasse uma módica quantia para ter acesso ao covil d a s f e r a s , n u m fantástico arremedo de Freak Show ou Feira de Aberrações. Na porta do serpentário, um velho de aspecto dantesco completava o ambiente, que se tornaria propício a inúmeros dos meus pesadelos. Logo cedo, fazia-se a romaria dos curiosos - homens puxando meninos, cabrochotes da feira, gente desocupada – formando fila. Uns estrebuchavam na saída, aos trotes e aos prantos de medo.
   Outros se retiravam desmistificando o espetáculo, mas, nesses, eu nunca acreditei. Diziam-me que entre os animais aprisionados as cobras eram a sensação, mas não se podiam descartar os aracnídeos e roedores ferozes, timbus, etc. O único senão era a insuportável catinga que exalava do velho ônibus, fruto dos dejetos e urina acumulados. Como nunca reneguei qualquer patifaria infantil, idolatrava e defendia até mais não poder o serpentário e seu suspeito mestre de cerimônias, principalmente quando os adultos se queixavam do mau cheiro e ameaçavam queixas à Saúde Pública. Ali compareci diversas vezes, acompanhado de Francisca, uma saloia amulatada que era dama de companhia de minha mãe. E por uns tempos, abandonei a farda de polidoro (do Exército, com coturno e tudo), com a qual desfilava o dia inteiro ao redor da casa. Mas os dias do serpentário estavam contados.

   Não sei se por queixas ou por simplesmente representar uma atração sazonal, uma certa manhã o ônibus anoiteceu e não amanheceu. Foi-se a maior sensação daqueles tempos no Alecrim, pelo menos para mim. Diria mais: na minha humilde concepção de criança, nada suplantou o serpentário. Nem as comédias no Cine São Luiz; nem as passeatas ao som de “vou barrar o fechador”; nem as visitas ao túmulo de Baracho. Que me de s culpem Lambretinha e Corisco, Brasa de Goma e a Velha da Carimã, todos guardados no coração como adorados bibelôs. Mas é que diante do maravilhoso serpentário, tudo parece apenas coadjuvante em minha já nublada memória de alecrinense.

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