25 de janeiro de 2018

O vale das carnaubeiras





Anchieta Fernandes

                      Não é saudosismo gratuito. Mas ao se recordar ou se ler a descrição de um passado em determinado espaço geográfico privilegiado, fica-se com a imagem sugerida do que pode ser um paraíso terrestre. É o caso, por exemplo, do Vale do Açu, no interior do Rio Grande do Norte, quando invernos generosos, em vez de enchentes traziam fartura, sem prejudicar o potencial de prosperidade econômica alcançado, com a cultura da carnaubeira (quase extinta na atualidade). O vale, ou várzea, produto da fertilidade do Rio Açu ou Piranhas, que nasce na Paraíba chamado de Piancó, e depois atravessa a região de Açu e Mossoró e deságua em Macau – foi o cenário que sediou o município de Açu, instalado a 11 de Agosto de 1788 com o nome Vila Nova da Princesa, em homenagem à Dona Carlota Joaquina, esposa de Dom João VI. É outro município que completou também 220 anos em 2008.

                                                      ÁRVORE MILAGROSA

                      Passou a ser Cidade do Açu a 16 de Outubro de 1845. Por conta da comemoração dos 150 anos desta outra data, foi publicado em 1995 pelo nosso Departamento Estadual de Imprensa o livro-antologia Sesquicentenário da Cidade do Assu 1845 – 1995, integrando a Coleção Vale do Assu, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O livro-antologia, organizado por Terezinha de Queiroz Aranha, é dividido em quatro partes, contendo trabalhos de trinta autores. Dos trabalhos, seis são dedicados especificamente à carnaubeira, seus produtos, derivados e as condições de seu cultivo e beneficiamento dentro do contexto histórico, sabendo-se que os carnaubais, mais recentemente foram erradicados em grande parte, devido à criação do Projeto Baixo Açu, com a construção da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, que inclusive submergiu totalmente a antiga cidade de São Rafael
                     O naturalista alemão Friedrich Alexander Humboldt definiu a carnaubeira como “a árvore da vida”. Ela foi a vida do Vale do Açu e o Vale do Açu lhe deu mais vida, multiplicando-a. Um dos ensaios do livro Sesquicentenário da Cidade do Assu 1845 – 1995 é um resumo comentado por Vânia Gico, do artigo “A Carnaúba”, escrito por Luis da Câmara Cascudo e publicado no V.26, n° 2 (abr/jun 1964) da Revista Brasileira de Geografia (ESAM, 1991). Segundo o trabalho de Vânia Gico, a carnaúba (copernicia cerífera, Mart) é planta típica do sertão, “destacando-se o carnaubal do Vale do Açu que começa próximo à cidade de Açu e estende-se até Macau. São famosas as várzeas do rio Apodi ou Moçoró e o rio Açu ou Piranhas que são as regiões prediletas dos carnaubais, o que torna o Vale do Açu o maior produtor (1934).”
                    Para os que nunca conheceram as utilidades da carnaubeira, cite-se algo do que aponta Vânia Gico: “a carnaubeira serve para fazer a casa, o mobiliário e os utensílios da casa do sertanejo. (...) O palmito – parte superior da haste – produz vinho, vinagre e a sacarina. A árvore produz ainda uma fécula nutritiva, a qual serve de alimento ao povo do sertão nordestino em época de escassez de alimento; o miolo das árvores picado nutre os cavalos, substituindo o milho; (...) das folhas novas extrai-se a cera vegetal. (...) Extraída a cera das folhas (que passam a chamar-se palha) estas servem para tecer chapéus e esteiras que podem ser na cor crua ou colorida. Servem para enchimento e forro de cangalhas, alimento para o gado, cobertura de tetos e revestimento da parede da casa (...); servem ainda para adubo, confecção de bolsas, reforço para carga de rapadura, urupemas, peneiras, vassouras, abano para fogão de lenha e carvão, leques e sacos sólidos e duradouros para o transporte e acondicionamento dos cereais, cordas trançadas e até redes de dormir.”

                                                  ALIMENTANDO PEIXES

                         Servindo tão bem à sobrevivência do homem e de seus animais de terra, a carnaubeira também se faz presente com sua utilidade dentro do sistema hídrico. Outro livro publicado na Coleção Vale do Assu, antes mesmo do sesquicentenário, foi relativo à Lagoa do Piató, situada no Vale do Baixo Assu. Sob o título Lagoa do Piató Peixes e Pesca, publicado em 1993, o pequeno livro (conta com 84 páginas) foi escrito por três escritoras pesquisadoras: Raimunda Gonçalves de Almeida, Leoneza Herculano Soares e Maria Madalena Eufrásio. Participando de 8 (oito) parcerias experimentais, na referida lagoa, durante o período de dezembro de 1988 a novembro de 1989, elas produziram um texto essencial, retratando a potencialidade pesqueira do vale naquela lagoa, naquela época; os métodos de pesca, uma descrição taxonômica das espécies habitantes das águas da lagoa e sua biologia alimentar.
                   E cabe aqui dizer da importância da carnaubeira quanto a esta biologia alimentar dos peixes, conforme está escrito à p. 17 do livro, referindo-se à Lagoa do Piató: “As suas margens Leste e parte Sul são dominadas pela mata ciliar da carnaúba, além de algumas outras vegetações terrestres de ocorrência comum, como oiticicas, joazeiros e umbuzeiros (...) Estas têm importância especial para o ecossistema aquático, pois contribuem direta ou indiretamente com ‘certa’ quantidade de material alóctone de origem vegetal, além da fauna de invertebrados que a eles encontram-se associados e que são consequentemente, injetados na cadeia trófica da lagoa, servindo como fonte de alimentos para peixes.”
                                                  
                                                REPERCUSSÃO CULTURAL

                    Estas benesses vegetais e animais repercutiram na essência farta da expressão de arte ou de cultura por alguns nativos do município de Açu, cuja sede, a cidade do Açu, foi chamada não poucas vezes de “Atenas norte-riograndense”, devido ao grande número de poetas que nasceram lá (só da família Wanderley veio uma boa quantidade deles). Mas escritores de outros gêneros também são muitos açuenses. Como Luis Carlos Lins Wanderley, aliás não somente o primeiro médico do Rio Grande do Norte (formado pela Academia de Medicina da Bahia em 1857) mas também o primeiro romancista do Estado, tendo publicado em 1883 o primeiro romance da literatura norte-riograndense, Mistérios de Um Homem Rico, dividido em duas partes. Já o seu filho, outro açuense, Ezequiel Wanderley, publicou em 1922 a primeira antologia de poetas do Estado, Poetas do Rio Grande do Norte.
                        Na cultura jurídica (aliás, Açu foi a primeira sede da 20ª Zona Eleitoral do RN, e com a renumeração das zonas eleitorais do RN em 1956, passando a ser a sede da 29ª Zona Eleitoral do RN), destacaram-se duas mulheres nascidas em Açu: Dra. Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro, que em 1981 foi a primeira mulher a compor o Plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte; e Dra. Eliane Amorim das Virgens de Oliveira, que em 1996 assumiu no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte como a primeira Desembargadora do Estado.
                        Pioneirismos outros é que não faltam na história cultural de Açu, lá mesmo no município. Exemplos: antes do descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral em 1500, o navegador espanhol Alonso de Hojeda passou pelo delta do Rio Açu, em 1499, acompanhado por outros navegadores, Américo Vespúcio (o mesmo que daria o nome aos continentes americanos) e Juan de La Cosa; Açu foi a segunda paróquia (1726), a segunda comarca )1835) e a segunda cidade (1845) do Rio Grande do Norte; é onde, em 1827, foi instalada a segunda cadeira de latim do Estado (a primeira, é claro, foi na capital, em 1731, assim como a primeira paróquia foi na capital em 1601, a primeira comarca, também na capital, em 1818, e a primeira cidade sendo a capital, Natal, desde 1599); o primeiro Museu de Arte Popular do Brasil foi instalado por Celso da Silveira, em Açu, em 1954, com o nome Museu de Artes Populares Açuense – MAPA.
                         É a força nutritiva da carnaubeira, influenciando o próprio destino de pioneirismo e criatividade da terra da Baronesa de Serra Branca, a que libertou seus escravos oito anos antes da Lei Áurea da Princesa Isabel, dando um banquete a estes seus ex-escravos, ela própria servindo-os na mesa; força ambiental que inspirou Rômulo C.Wanderley a escrever o emocionante livro-poema Canção da Terra dos Carnaubais, publicado pelo Departamento de Imprensa em 1965, com ilustrações de Newton Navarro; generosidade da Natureza em época invernosa, levando um Manoel Rodrigues de Melo, em seu livro Várzea do Açu (Agir Editora, Rio de Janeiro, RJ, 1951), a fazer esta descrição, de uma saudade contagiante:

                        “A VÁRZEA DO AÇU é uma região plana, de aluvião, que, a partir do ‘Estreito’, onde o rio cortou o dique da Serra de Santana, vai-se alargando sucessivamente, ladeando as bordas dos tabuleiros adjacentes, até morrer nas costas do Oceano Atlântico. A começar da cidade do Açu, porém, até à sua embocadura, o rio toma vários destinos, rasgando a Várzea em todas as direções. Os pequenos regatos que fogem apressadamente do seu leito, os grandes braços que se separam do velho curso, formando adiante inúmeros córregos e riachos; o interminável carnaubal que se estende por toda a região ribeirinha, balouçando a sua cabeleira verdejante; as grandes árvores que pontilham os campos largos; as inumeráveis ervas que lhe vestem as lombadas planas; a imensa variedade de capins que infestam as barreiras dos córregos e riachos deslizantes; o tapume espinhoso das unhas-de-gato e dos calumbis abaloados; as canelas-de-ema e as ervas-cidreiras; as melosas crespas das vazantes frescas; as salsas frondejantes e as trepadeiras ondulosas, tudo isso faz da Várzea do Açu uma terra esplêndida e majestosa, cheia de encantos e atrativos, capaz de conquistar os temperamentos mais esquisitos e singulares.”  

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